Poesias
Fome
Noite, amanhece em mim, noite,
e faz do sonho um dia afoito.
Fome, debanda de mim, fome,
e faz do homem um sonho louco
no golpear dos punhais, até o cabo,
no calar da agonia, dai-me sede
o doer animal, a ferida aberta
que nos encilha no lombo da treva
pela boca, pelos olhos, pela terra
sempre vens, noite, e me queima a fome
sempre vens, fome, e me cega a noite
sem que eu te chame fera e coice
sombra mendiga de mim, fome
anjo maldito de mim, noite
sempre vens nos rastros do lucro
saindo do lixo de todas as coisas
das árvores, dos bichos, do vento
sempre vens, fome e sangue e noite
sem que eu te chame de mais-valia
por tudo, pelos famintos, pelos noctâmbulos
onde o logro é culpa só minha e sina
e máscara que me cala em qualquer ilha.
Não há mais tempo para me salvar nem
matar-me de faca e tiro eu ousaria.
Não há lugar para a casa, as palavras -
cheias estão as bilhas de medo, e da carniça
do amor os abutres comeram a alma,
pisotearam nos quintos o inferno
a alma que se ia plantar ao deus-dará
pela mão dos outros, pelo sonho dos outros
pela esperança dos outros engolimos
o desprezo até onde podemos suportar.
Pelos rios de sangue corre a aurora, e o medo
há de nos abrir os olhos sem ódio ao sol.
A dor há-de nos purgar quanto mais resistirmos
e tece o orgulho a manhã em cada dia de fome
e ousa, ousa quando a hora bater, mesmo antes,
por tudo, pela noite, pelo sangue, pela covardia:
que a raiva dos deuses caia sobre todos,
a Vida é ninguém, ninguém - não sabe calar!
Sombra mendiga de mim, noite,
besta corcunda de crimes, fome,
anjo caÃdo dos pélagos, noite,
touro a escarvar o estômago, fome,
e venta a dor até a hora chegar,
morte-cachorra, morrer mais não podes.
Se não tu, fome, quem há de acordar
a aldeia, mudar o rumo das estrelas?
Quando os olhos insones da fome
olharem nos teus olhos, de suas caras
rudes, quem, senão tu, haverá de dizer
que a vida transgredida ainda é possÃvel
quando a hora chegar, e mesmo antes?
A Vida é alguém, alguém - e não sabe calar!
31/05/2011